terça-feira, 5 de maio de 2009

Entrevista. Mestre e doutora em letras e linguística, Elizabeth Santos Ramos, neta de Graciliano Ramos, fala da obra do avô

O Brasil que Graciliano Ramos descreveu em "Vidas Secas", por meio dos personagens Fabiano, Baleia e Sinha Vitória, ainda resiste nos noticiários atuais. Mestre e doutora em letras e linguística pela Universidade Federal da Bahia, Elizabeth Santos Ramos, 58, neta do escritor alagoano, assim cria a relação temporal: "O que normalmente me aflige é observar a problemática construída no romance refletida no noticiário, no nosso cotidiano". Ela desenvolveu mestrado com análise na tradução para o inglês de "Vidas Secas", "São Bernardo" e "Infância" e escreveu a tese de doutorado "‘Vidas Secas’ e ‘The Grapes of Wrath’: O Implícito Metafórico e sua Tradução", um "estudo da tradução das metáforas de exclusão nas duas obras de Graciliano Ramos e John Steinbeck". Na entrevista a seguir, Elizabeth fala sobre a atualidade de "Vidas Secas" e da relação do romance com a atualidade, da ‘miséria e das relações de poder’.

O que significa "Vidas Secas" para a compreensão do Brasil, tanto nos anos 30 como agora?

O romance aguça o olhar crítico com referência, particularmente, à miséria e às relações de poder e submissão, ainda existentes no Brasil. Talvez, por isso, conste da lista dos livros cuja leitura é exigida para o vestibular em todo o país.

Para o leitor estrangeiro, qual o impacto que o livro causa?

A julgar pelas vendas, resenhas e pelo desconhecimento do nome do autor no exterior, fora do circuito acadêmico, não creio que cause muito impacto. No entanto, é preciso observar que, não raro, obras canônicas, que se deslocam de um "sistema literário periférico" para outro "hegemônico", perdem sua condição central. Basta lembrar, por exemplo, o que acontece com a literatura em língua inglesa produzida em países africanos ou caribenhos - a chamada literatura pós-colonial.

Quanto dessa literatura é traduzida no Brasil?

Muito pouco. E o fato não tira dessas produções o seu valor. É apenas lamentável que não tenhamos acesso a excelentes textos produzidos nesses lugares do mundo. O mesmo raciocínio aplica-se a "Vidas Secas". É interessante observar que o romance foi publicado em 1938 e que, no ano seguinte, John Steinbeck lançou o seu "As Vinhas da Ira", com temática semelhante e extremo sucesso nos Estados Unidos e no exterior. "Vidas Secas" só foi traduzido nos Estados Unidos em 1961, pela Texas University Press.

Como enxergar o Brasil através de Fabiano e Baleia?

Em carta datada de 7 de maio de 1937, Graciliano escreve à sua mulher, Heloísa: "Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás". Em "Vidas Secas", o leitor depara-se com as seguintes palavras do narrador: "Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles." No entanto, ao final do romance, o narrador anuncia: "Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos". A esperança anterior dá lugar, então, à impossibilidade do sonho. Será que os milhares de miseráveis do nosso país terão, algum dia, preás antes do sono? É o que todos nós desejamos, não é mesmo?O leitor brasileiro ainda se incomoda ao ler "Vidas Secas", no sentido de que a miséria, a pobreza e a seca são questões vivas, mas não mais tão camufladas? Se o leitor se incomoda, é difícil saber. Sei que eu me incomodo. Mas não me incomodo com a leitura de "Vidas Secas". O que normalmente me aflige é observar a problemática construída no romance refletida no noticiário, no nosso cotidiano. A respeito de "Vidas Secas", Graciliano escreveu ao tradutor argentino Benjamín de Garay, 1937: "Não sei não, Garay. O meu bárbaro pensamento é este: um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito a humanidade. E ficarei nisto, enquanto não me provarem que os arranha-céus têm alma." (A informação está no livro de Pedro Moacir Maia, "Cartas Inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos", EDUFBA, 2008)

Os livros de Graciliano Ramos têm a solidão como elemento comum - estou certo em afirmar?

"Vidas Secas", "Angústia" e "São Bernardo" trazem personagens isolados em si, ainda que em convivência com outros. O quanto reflete o próprio escritor? E qual a importância dessa solidão na escrita de Graciliano? Não vejo "Vidas Secas" como romance composto por "personagens isolados em si". Ao contrário. Há uma solidariedade muito clara entre os membros da família, uma preocupação grande de Fabiano com a mulher e os filhos. É a união entre eles que permite a sobrevivência em condições tão adversas. Fabiano, um bruto que não sabia falar, se preocupa com Sinha Vitória, com a casa, com a família: "Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras Sinha Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia". No capítulo Cadeia, o próprio personagem afirma: "Se não fosse isso... An!". Se não fosse o senso de solidariedade entre os membros da família, Fabiano teria matado o Soldado Amarelo, teria se juntado ao cangaço... Acredito que o afeto, existente em "Vidas Secas", rompe a solidão, o que não acontece em "Angústia" ou "São Bernardo".

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