terça-feira, 19 de junho de 2012

Intérprete lembra processo que culminou na execução de nazista

Há 50 anos, o organizador do Holocausto, Adolf Eichmann, foi condenado à morte. Ruth Levy-Berlowitz, que vivenciou o processo como intérprete, entregou agora à Casa da História, em Bonn, seu exemplar do veredicto. Trata-se aparentemente apenas de dois pacotes de papel: um contendo documentos em hebraico, outro em alemão. O significado dos mesmos é, contudo, enorme, pois eles são o testemunho de um acontecimento internacional, veiculado pela mídia e único para a época: o processo contra o tenente-coronel da SS, Adolf Eichmann, iniciado em abril de 1961 e concluído na noite do 31 de maio para o 1° de junho de 1962, com a condenação do réu à morte por enforcamento.


A intérprete Ruth Levy-Berlowitz, que nasceu em Dresden em 1925 e fugiu em 1936 com seus pais da Alemanha nazista, desempenhou no processo um papel especial. Com sobriedade e lembranças extremamente precisas, ela relata como reagiu quando recebeu a proposta de servir de intérprete durante o processo. "Pedi um tempo para pensar e contei para meu marido. Ele me disse: 'Você não é normal, para usar um termo ameno'", recorda Levy-Berlowitz. A família quis afastá-la da ideia de assumir a função, mas a tradutora viu na incumbência um desafio. Afinal, ela era uma intérprete profissional. Além do fato de que tinha também certa curiosidade e certo "espírito aventureiro", como confessa hoje.

Respirando o horror

Ruth Levy-Berlowitz resolveu testar seus próprios limites. Ela teve acesso aos documentos relativos aos depoimentos de Eichmann e se isolou num hotel de Tel Aviv. "Vivi, comi e dormi Eichmann. Me distanciei de todos os outros hóspedes. E tentei detectar se tudo teria um peso sobre mim, se Eichmann me perseguiria no sono, no sonho", relata. Como isso não ocorreu, essa mulher robusta, com seu jeito lacônico, aceitou a incumbência de traduzir, do hebraico para o alemão, os depoimentos das testemunhas de acusação de Eichmann e de seu defensor.

Durante meses, ela passou oito horas por dia susurrando para Eichmann, através de um fone de ouvido, sempre por 20 minutos ininterruptos: e sempre de maneira profissional, sem se alterar emocionalmente, buscando palavras para descrever o horror. Somente nos 20 minutos, nos quais outro intérprete assumia a tradução, é que ela conseguia se dar conta, de fato, do que havia sido dito. Mesmo assim, Levy-Berlowitz permanecia inabalada.

E Eichmann, que sentimentos demonstrava? "Nenhum. Lá ficava sentado como que petrificado dentro de uma redoma de vidro, ladeado por dois seguranças mudos", relembra a intérprete. Segundo ela, a cena parecia irreal, quase surrealista. "O fato de que minhas palavras chegavam a ele em tom de sussurro, sem causar qualquer impacto, era para mim muitas vezes algo incômodo", diz Levy-Berlowitz.

A importância histórica da sentença contra Eichmann

A tradutora se protegia internamente. Quando deixava o prédio do tribunal, começava para ela outra vida. "Depois que o processo acabou, jurei para mim mesma que nunca teria mais nada a ver com Eichmann", relembra. E foram necessários alguns anos até que ela conseguisse novamente falar de novo sobre o Holocausto. "Cheguei ao ponto de ter cumprido minha obrigação perante a Shoá", fala Levy-Berlowitz.

Para a sociedade alemã do pós-guerra, o processo apenas começava: depois de 15 anos de sublimação de todo o ocorrido, as pessoas na então Alemanha Ocidental não podiam mais continuar ignorando o passado nazista. "Pela primeira vez, os crimes hediondos do regime passaram a ser assunto entre a opinião pública", diz Hans Walter Hütter, diretor da Casa da História, em Bonn.

De forma que o veredicto contra Eichmann foi um testemunho histórico em três sentidos: como narrativa da história do Holocausto e de sua elaboração tanto em Israel, quanto na Alemanha. Quando Hütter soube que este documento único seria entregue à Casa da História, mal pôde conter sua emoção. "Dietmar Preissler, que trabalha comigo, chegou um dia ao meu escritório, demonstrando certa ansiedade, e disse que seria possível obter esses documentos", recorda Hütter. A partir daí foram feitos todos os esforços em prol de uma transferência dos papéis o mais rápido possível.

Banalidade do mal?

A sentença de condenação de Eichmann terá em breve seu lugar fixo na exposição permanente da Casa da História, ao lado do vídeo de uma entrevista com Ruth Levy-Berlowitz. Hannah Arendt, a filósofa de origem judaico-alemã, compareceu ao processo em 1961 enviada pela revista The New Yorker, tendo publicado posteriormente suas observações no livro Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Levy-Berlowitz não chegou a conhecer Arendt, pois exatamente na semana em que a filósofa acompanhou o processo, a tradutora esteve doente, com uma amigdalite.

"Foi minha única ausência durante todo o processo", conta Levy-Berlowitz. Sua substituta, contratada às pressas, fez um trabalho medíocre, diz a intérprete. E exatamente nesta semana Hannah Arendt acompanhou o processo. "Ela nunca ouvia a tradução completa, nada do que vinha depois. Seu livro baseia-se em uma única semana de julgamento", fala a tradutora.


Quem foi Eichmann?

Para Levy-Berlowitz, Eichmann nunca despertou, contudo, a sensação de "banalidade". O adjetivo escolhido por Arendt, segundo a intérprete, não é adequado. "Ele era um homem baixo e horrendo", relembra. Dietmar Preissler, diretor de coleções da Casa da História, afirma que Eichmann não era o "homem comum" descrito pela filósofa. "Admiro Hannah Arendt por várias coisas, mas neste ponto não concordo com ela. Há muitos historiadores que também compartilham minha opinião", fala Preissler.

Segundo ele, Eichmann esteve altamente envolvido na preparação do Holocausto. E o processo provou que ele carregava essa responsabilidade não apenas como um algoz de escrivaninha, que dava ordens à distância. "Nas sessões do tribunal, ele tentou se colocar como um parafuso no maquinário nazista, como alguém que somente acatava ordens. Mas através de outros depoimentos fica claro que ele era um algoz convencido daquilo que fazia", aponta Preissler.

Ruth Levy-Berlowitz lembra com sobriedade o que sentiu quando deu a Eichmann a notícia sobre sua sentença de morte: "cumpri minha obrigação", diz ela, dando mostras de que mantém até hoje sua postura profissional de intérprete.

Terra notícias