terça-feira, 7 de setembro de 2010

Nossos três russos

Há muitas explicações para o sucesso cada vez maior da literatura russa no Brasil. Uma delas é que Tolstói e Dostoiévski andam desembarcando no país sem fazer escalas por outros idiomas. Um fenômeno que deve ser atribuído a três pessoas.


No final de 1963, o Partido Comunista Brasileiro convocou um grupo de dez jovens militantes para um curso de ciência política em Moscou. Em seis meses eles receberiam subsídios teóricos suficientes para, de volta ao país, participarem do projeto de tomada do poder. Os militares foram mais rápidos. “Nós soubemos da notícia por uma rádio brasileira que conseguimos sintonizar no alojamento. Ficou impossível voltar para casa. Acho que o Castello Branco soube que eu estava lá e resolveu dar o golpe para me beneficiar”, brincou o paraibano Paulo Bezerra, o único operário do grupo.

Cinco anos antes, deixara a família em João Pessoa e fora para São Paulo, com a intenção de trabalhar na indústria. Faltava-lhe, porém, qualificação profissional. Com as economias que tinha, matriculou-se num curso noturno de desenho mecânico e, para se sustentar, fez bicos em bares e padarias até finalmente ser contratado pela fábrica Brasilona, em Guarulhos.

Era o auge do movimento sindical e Paulo Bezerra não demorou a se engajar. Entusiasmado com as histórias que ouvia da União Soviética, passou a ler tudo que encontrava relacionado ao país, até que Crime e Castigo caiu em suas mãos. “Foi o primeiro romance que eu li na minha vida. Fui arrebatado”, lembrou numa manhã de maio em sua casa, no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Encalhado em Moscou, Bezerra resolveu aproveitar o exílio e emendou o curso de política a outros de filosofia, economia e história. Como era aplicado, conseguiu uma bolsa de estudos na Lomonóssov, a maior e mais antiga universidade russa, onde estudou língua e literatura. A temporada em Moscou acabou se estendendo por oito anos, entre moradias estudantis e casas de família.

Quando finalmente se sentiu capaz de ler Dostoiévski[1] no original, Bezerra percebeu uma distância abissal entre o texto russo e o que tinha lido no Brasil, traduzido por Rosário Fusco e publicado pela José Olympio. Teve a impressão de que a edição brasileira, baseada na francesa, e também na espanhola, não conseguira se livrar do perfume enjoativo do beletrismo, ainda em voga na época. “Mas creia-me, por quem é! Por que razão enganá-lo?, pergunto-lhe. Ao contrário, e a coisa espanta-me: parece-me, a mim, particularmente, quase doentiamente pudica”, dizia a tradução de Fusco. “Dostoiévski é um escritor rude: ele tem a concepção de uma realidade dura, feia, e a linguagem que traduz essa realidade precisa ser coerente com isso. Mas os tradutores franceses não entendiam isso e amaneiravam o texto. São os piores tradutores de russo da Europa”, comentou. “Mas pode acreditar! E por que cargas-d’água eu iria esconder de você, quer fazer o favor de me dizer? Ao contrário, eu mesmo acho isso estranho: comigo ela é de um jeito redobradamente, timidamente puro e acanhado”, lê-se o mesmo trecho, agora traduzida por Bezerra.

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