quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Crime e castigo: Como traduzir Dostoievsky pode ter tudo a ver com as convulsões da Europa do século XX

Basta olhar para a espessura dos volumes: Crime e Castigo, O Idiota, Os Irmãos Karamazov, O Adolescente, Os Demónios. São "os cinco elefantes" do título do documentário de Vadim Jendreyko, os cinco romances de Fyodor Dostoievsky dos quais Svetlana Geier diz que não se traduzem com impunidade


É aí que se ganha, definitivamente, o terceiro grande filme da competição do DocLisboa, a par de "Last Train Home" e "Nostalgia de la Luz": no momento em que a tradutora Svetlana Geier sintetiza, numa frase perfeita, a sua própria vida. Nada se faz com impunidade - e o que começa por ser um filme sobre a tradução como arte torna-se uma viagem ao coração negro da Europa do século XX que foi a II Guerra Mundial, com a tradutora como personagem, mais do que simples testemunha, das convulsões sociais e políticas que afectaram o continente.

Viúva com bisnetos, matriarca de um clã centrado na cidade alemã de Freiburg, Geier dá aulas e traduz pacientemente, sem computadores nem prazos, ditando a uma secretária que dactilografa directamente à máquina, revendo à mão com lápis à medida que um amigo lê em voz alta o rascunho. Mas um acidente familiar e um convite para ir à sua Ucrânia natal dar aulas abre as comportas do seu passado: desde 1943, ano em que emigrou para a Alemanha com a mãe, que esta filha de um agricultor que sobreviveu às purgas de Estaline não regressava a Kiev.

E não há racionalização sobre o pragmatismo da sobrevivência que a faça esquecer os mortos que a marcaram: a amiga judia massacrada pelos nazis em Babi Yar, o alto dignitário alemão que sacrificou o seu posto na hierarquia nazi para garantir o seu visto de residência, o pai que morreu das consequências do seu internamento depois de lhe contar todos os horrores pelos quais passou e que ela bloqueou numa memória a que não consegue aceder.


"The Woman with the 5 Elephants" não julga: o julgamento está nos olhos e na expressão de Svetlana Geier, filmados com respeito, pudor e delicadeza pela câmara sempre atenta de Vadim Jendreyko. Regista, apenas, a luta de uma mulher que está a fazer as pazes com o seu passado. Uma mulher para quem "as línguas não são compatíveis" mas "a linguagem é um remédio muito eficaz", para quem "a razão oferece sempre uma razão para tudo", mas "não há fins que possam alguma vez justificar os meios". É possível haver castigo sem crime?

Jorge Mourinha
Competição internacional "The Woman with the 5 Elephants", de Vadim Jendreyko. Cinema São Jorge, hoje às 19h30