O ensaísta e tradutor Modesto Carone reúne no livro Lição de Kafka 14 ensaios sobre o mais importante autor checo que se eternizou em língua alemã
Se a obra de Franz Kafka (1883-1924) é leitura obrigatória para todo sujeito civilizado, Modesto Carone reuniu diversos ensaios sobre o autor em Lição de Kafka (levando em consideração que a maior parte dos leitores conhece a obra do escritor checo).
Muito já foi dito, e repetido, a respeito do que pode significar a obra de Kafka. De Adorno, passando por Otto Maria Carpeaux, a Sergio Buarque de Hollanda, milhares de textos apontam Kafka como um dos inventores da literatura moderna. Mais que isso: ele é considerado um dos pilares da contemporaneidade.
Há muitos fatos, ou fatores, que credenciam Kafka como um dos autores mais importantes de todos os tempos. Em primeiro lugar, ele escreveu livros muito complexos e, ao mesmo tempo, curtos, comparados com obras de autores que o antecederam e mesmo com nomes do presente.
A Metamorfose, na edição da Companhia das Letras, tem 96 páginas. Contemplação/O Foguista, da mesma editora, tem quatro páginas a mais. Essas duas, e outras obras de Kafka, mesmo em menos de cem páginas problematizam questões as mais humanas possíveis a partir de pontos de vista completamente originais, e sem prolixidade, o que resulta em textos que podem ser lidos em relativo pouco tempo (algo bastante adequado ao século 21, período em que tempo livre é artigo raro e caro).
Carone, que também é escritor, tem autoridade para falar de e sobre o autor checo. Ele é o principal tradutor de Kafka no Brasil, e traduziu diretamente do alemão, entre outras obras, Um Artista da Fome, Na Colônia Penal, O Castelo, Narrativas do Espólio, Carta ao Pai, O Processo e Um Médico Rural, e, por esse monumental trabalho, já recebeu três prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL).
A grande metáfora
A Metamorfose, de 1915, traz uma das mais famosas e conhecidas aberturas de longas narrativas da ficção ocidental: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
Esse enredo já foi apontado como uma simbologia a respeito do que viria a ser a situação mundial durante a ascensão de Adolf Hitler. O início de outro clássico de Kafka, O Processo, também já foi interpretado como uma metáfora do que seria viver em um espaço-tempo em meio ao nazismo (ou qualquer outro regime totalitário radical): “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”
Carone dialoga com leitura clássicas da obra de Kafka, mas apresenta as suas próprias interpretações. Para ele, A Metamorfose é uma representação de um impasse familiar, uma vez que Gregor Samsa era o provedor da família e, a partir do momento em que se transforma em inseto, passa a ser um estorvo que precisa ser eliminado. O judeu checo e alemão, que Kafka era, atravessou os 41 anos de sua vida em confronto com o pai, que exigia que o filho com rica vida interior fosse um homem prático.
O ensaísta analisa que O Processo é um texto literário que decifra a condição humana: o protagonista é preso, acusado de algo que não fez. Isso, para Carone, evidencia o quanto não somos donos de nossos destinos. A vida acontece independentemente do desejo e da vontade dos homens.
Outro aspecto relevante, detectado por Carone, é a linguagem utilizada por Kafka. Em A Metamorfose, o escritor trata de um tema absurdo (um homem que “vira” uma barata) por meio de uma linguagem aparentemente conservadora, linear e previsível (e isso, usar uma linguagem simples para tratar de algo complexo teve como efeito literatura da mais alta qualidade).
De maneira geral, Modesto Carone faz ver que a ficção de Kafka aponta para algo cruel, mas irremediável: na experiência humana, em meio a tantos embates, podemos salvar o corpo, mas em geral naufragamos a alma, e isso pode fazer de um humano não mais do que um inseto.
Gazeta do Povo, 15.02.10