segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Posfácio do Tradutor

Em 1954, quando vivia em Washington como mulher de um diplomata brasileiro, Clarice Lispector recebeu a tradução francesa de seu primeiro livro, Perto do coração selvagem. Publicado uma década antes no Rio de Janeiro, este livro foi seu primeiro a ser traduzido no estrangeiro, e o resultado foi calamitoso.


Numa série de cartas que supostamente “prejudicaram a saúde” de seu editor, ela deu conselhos valiosos para seus futuros tradutores.

“Admito, se o senhor quiser, que as frases não refletem a maneira usual de falar, mas lhe garanto que ocorre o mesmo em português”, ela escreve. “A pontuação que eu emprego no livro não é acidental e não resulta de uma ignorância das regras gramaticais. O senhor concordará que os princípios elementares de pontuação são ensinados em qualquer escola. Estou plenamente consciente das razões que me levaram a escolher essa pontuação e insisto que ela seja respeitada.”

Este é um ponto que seus tradutores fariam bem em reter: não importa quão estranha a prosa de Clarice soe em tradução, ela soa igualmente insólita no original. “A estrangeiridade de sua prosa é uma das evidências mais contundentes de nossa história literária e, ainda, da história de nossa língua”escreveu o poeta Lêdo Ivo.

A escritora canadense Claire Varin lamenta a tendência de seus tradutores a “arrancar os espinhos do cactus”.

Essa tendência é compreensível. Pode mesmo ser inevitável. As palavras esquisitas de Clarice Lispector, sua sintaxe estranha, a falta de interesse na gramática convencional produzem frases – ou fragmentos de frases – que vão na direção da abstração sem nunca chegarem lá. O seu objetivo, místico além de artístico, era reorganizar a linguagem convencional para encontrar sentido, sem nunca descartá-lo por completo.

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